Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade.

32 – O Choro da Memória do Corpo: Quando o Bebê Conta Sua História Sem Palavras

32 – O Choro da Memória do Corpo: Quando o Bebê Conta Sua História Sem Palavras

25/06/2025

Quando o choro do bebê não passa

Era madrugada. A mãe já tinha tentado de tudo: peito, colo, fralda, canções, silêncio, movimentos ritmados. No entanto, nada funcionava. O bebê seguia chorando. O pai, exausto, pressionava as têmporas, sentindo o som como agulhas no cérebro.

Além disso, o bebê, vermelho, com o corpo tenso e os olhos aflitos, continuava a chorar. Aquela cena, que poderia parecer banal, era, na verdade, o eco de algo profundo — algo que ninguém ali ainda sabia nomear.

Toda mãe, todo pai ou cuidador já viveu esse momento: o bebê chora, você verifica a fralda, oferece o peito ou a mamadeira, tenta colocar para dormir, pega no colo, canta… porém nada funciona. O choro persiste. Logo, começa a surgir a angústia: “O que está acontecendo com meu filho?”

Muitas vezes, essa experiência leva ao desespero. E, quanto mais tentativas frustradas de consolar, maior é o sentimento de impotência.

É nesse ponto, portanto, que precisamos olhar para uma diferença fundamental: existe o choro por necessidade e o que chamamos aqui de choro da memória do corpo.

choro

O choro por necessidade: um pedido objetivo de ajuda

Segundo Dr. William Emerson, pioneiro da Psicologia Pré e Perinatal, o choro por necessidade é aquele que surge quando algo está biologicamente disfuncional para o bebê. Ele está com fome, frio, molhado, cansado ou desconfortável fisicamente.

Esse choro costuma ser mais “direto”. De fato, quando a necessidade é atendida, ele cessa. Em resumo, é o choro que convida o adulto à ação: trocar a fralda, alimentar, acolher. Embora possa ser desafiador, ele é facilmente compreendido e acalmado.

choro

O choro que persiste e confunde

Imagine um trovão preso dentro do peito, reverberando por todo o corpo como um alarme que não pode ser desligado. É assim que muitos pais descrevem o choro do bebê que não passa — um som que não apenas incomoda, mas ativa em nós algo primal, visceral, difícil de nomear.

O problema ocorre quando o choro continua mesmo depois de tudo ter sido providenciado: o bebê está alimentado, limpo, aquecido, no colo… e ainda assim chora. Não é um choro leve ou de manha, mas um choro que expressa algo mais profundo, que parece não ter causa.

Esse tipo de choro costuma ser muito irritante e penetrante — como um alarme disparando dentro do peito, reverberando no corpo e deixando o sistema nervoso em alerta máximo. Ele vai direto ao nosso sistema nervoso, como se buscasse abrir uma ferida esquecida. Não raro, esse som gera uma urgência interna de “fazer calar”, uma sensação de colapso iminente. E isso não é por acaso: esse choro toca também nossas próprias memórias corporais e traços de desamparo.

choro

Memórias implícitas: o que há por trás dos rótulos comuns ao comportamento dos bebês

Começam os diagnósticos populares: “Esse bebê é muito sensível”, “É manhoso”, “Quer colo demais”. No entanto, o que está por trás disso pode ser algo que a ciência já consegue explicar com profundidade: a ativação de memórias implícitas.

Certa vez, atendi uma mãe cujo bebê chorava sempre que o pai o pegava no colo. Era angustiante para ambos. Em sessão, emergiu a informação de que o parto havia sido muito difícil e, nos momentos finais, foi o pai quem segurou o bebê primeiro, num momento de muita tensão. O corpo do bebê associou aquele toque ao estresse vivido e, meses depois, ainda reagia com choro profundo. Quando a história veio à tona e o pai pôde se reconectar emocionalmente, o bebê começou a relaxar mais facilmente no colo dele.

choro

O corpo se lembra: casos clínicos que revelam a origem do choro

Em outro caso, uma mãe me relatou que sua filha chorava intensamente todas as vezes que era colocada no bebê conforto. À primeira vista, parecia birra. No entanto, ao observarmos com atenção os padrões corporais da bebê durante o choro, surgiram sinais claros de tensão: rigidez muscular, movimentos contidos e uma expressão de aflição profunda.

Diante disso, iniciamos um trabalho de suporte sensível, respeitando os movimentos espontâneos do corpo da bebê e oferecendo espaço para que ela completasse respostas interrompidas do nascimento — gestos que, mesmo sem nome, o corpo ainda precisava concluir. Aos poucos, ela começou a liberar essa tensão acumulada. A hipótese era clara: o parto havia sido longo, com muita pressão no canal. Sempre que era posicionada na cadeirinha, a sensação de estar presa parecia ser reativada.

Com apoio adequado, aquele choro se transformou em alívio. Após algumas sessões, a bebê já conseguia sentar no bebê conforto sem chorar, permanecendo visivelmente mais tranquila e relaxada. Era como se seu corpo finalmente tivesse reconhecido: agora é seguro.

Mais do que um alívio prático, a transformação trouxe também um impacto emocional para a mãe. Emocionada, ela relatou como era libertador poder colocar a filha na cadeirinha sem vê-la em sofrimento — e sem reviver o próprio trauma. Afinal, embora o choro pudesse cessar com o tempo, os padrões interrompidos do nascimento dificilmente desapareceriam sozinhos. Eles se manifestariam em outras formas, em outros momentos da vida. E quantos de nós crescemos carregando essas marcas invisíveis, acreditando que eram apenas parte da nossa personalidade?

Dar àquela bebê a oportunidade de integrar sua experiência de nascimento foi mais do que uma intervenção terapêutica: foi oferecer um espaço de amparo, presença e liberdade desde muito cedo.

Quando o corpo do bebê revive traumas esquecidos

Outros exemplos são comuns: bebês que choram intensamente ao serem colocados no berço sozinhos — revivendo a separação pós-parto — ou ao serem afastados do colo da mãe — reencenando a perda de um irmão gêmeo ainda no útero. Além disso, em alguns casos, os choros evocam até histórias transgeracionais, como o medo ancestral de abandono ou os lutos não elaborados de gerações anteriores. Por isso, é essencial lembrar: cada corpo carrega em si uma história que precisa ser escutada com mais do que ouvidos — com presença e sensibilidade.

A origem invisível: experiências que deixam marcas

O choro persistente pode ser a expressão de vivências que aconteceram muito antes do que costumamos imaginar — no útero ou durante o nascimento. Um parto abrupto por cesárea, a indução artificial que desorganizou o ritmo natural, o uso de fórceps que deixou um registro de invasão, a separação precoce da mãe nos primeiros minutos de vida, a perda de um irmão gêmeo ainda na barriga.

Há também os ecos de histórias que não são diretamente nossas, mas que atravessam gerações: lutos não vividos, exílios, exclusões, abandonos silenciosos. O bebê não sabe nada disso com palavras, mas carrega essas informações no corpo — e pode expressá-las por meio do choro, da tensão muscular, da forma como respira ou se fecha.

Essas marcas não são apenas emocionais: são somáticas. Elas se instalam no sistema nervoso autônomo, moldam padrões de contração crônica, estados de hipervigilância ou colapsos sutis. Portanto, o bebê não está “fazendo drama”. Ele está, com todo seu corpo, contando algo que ainda precisa ser escutado, sentido e acolhido.

choro

Como os bebês curam: movimentos espontâneos e respostas interrompidas

Bebês processam traumas com o corpo. Eles tremem, espreguiçam, fazem movimentos repetitivos com os braços e pernas, vocalizam sons intensos. Esses gestos podem parecer espontâneos, mas geralmente surgem quando algo no ambiente atual ativa uma ferida interna — muitas vezes relacionada ao nascimento ou à gestação.

Com o suporte adequado da Terapia Somática Pré e Perinatal, é possível ajudar o bebê a completar processos que ficaram interrompidos. Com presença sensível, segurança e sintonia, ele consegue finalizar o que ficou suspenso: o empurrar do parto que não se completou, o primeiro choro que foi contido, o gesto de buscar o peito que foi impedido.

São movimentos que o corpo sabe que precisa completar, mesmo que não saibamos nomeá-los com precisão. O importante não é entender intelectualmente, mas oferecer o espaço e o apoio necessário para que o corpo do bebê possa se autorregular.

Esse processo não é algo que se ensina ao bebê — porque ele já sabe, instintivamente, o que precisa fazer. O que ele precisa é de um ambiente seguro e de uma presença sintonizada que facilite a liberação do que ficou preso. E, quando isso acontece, o corpo integra. Relaxa. Confia.

Muitas vezes, os bebês não estão apenas reagindo ao presente. Estão tentando contar, com o corpo, a história do seu nascimento ou de experiências precoces interrompidas. E, quando encontram quem escute com o corpo inteiro — sem pressa, sem julgamento, com presença real — algo profundo pode finalmente se reorganizar.

choro

O choro como convite à escuta e não à correção

Enquanto o choro por necessidade pede uma ação, o choro da memória do corpo pede escuta. Não uma escuta intelectual, mas uma presença regulada, empática, que diz ao bebê: “Eu estou com você, mesmo que eu não entenda tudo”.

É esse tipo de escuta que permite que a memória seja acolhida. Que o corpo, enfim, se sinta seguro para relaxar. O choro, nesse caso, é parte do processo de cura, e não um sintoma a ser silenciado.

Mas, para essa co-regulação acontecer entre pais e bebê, é essencial que o sistema nervoso do cuidador esteja calmo. Não adianta tentar forçar uma presença se o choro do bebê desperta irritabilidade, raiva ou impotência — essas reações têm raízes profundas no adulto, muitas vezes ligadas à sua própria história de dor. Forçar-se a silenciar o que sente e a se acalmar na marra pode gerar mais instabilidade interior e mais tensão no sistema nervoso. E isso não favorece a regulação do bebê.

choro

Pais também precisam de cura

Por isso, em muitos casos, os pais também precisam passar por seus próprios processos de cura. Como expliquei em meu artigo anterior (Acesse o artigo: Nossas Marcas da Concepção e do Nascimento Podem Ressurgir Quando Decidimos Ter um Bebê), os filhos frequentemente se tornam um instrumento de regressão para os pais — reativando neles memórias emocionais profundas, muitas vezes pré-verbais, que foram armazenadas no corpo desde seus próprios inícios de vida.

Eles funcionam como espelhos vivos, trazendo à tona dores antigas que pedem, agora, uma nova chance de serem compreendidas e transformadas.

Cada crise, cada choro do bebê, pode ser também uma convocação silenciosa para o cuidador olhar para si, revisitar suas próprias experiências e abrir espaço para uma cura mútua — reativando neles emoções, traumas e padrões que vêm desde muito cedo. Escutar um bebê, com real presença, exige também que aprendamos a escutar nossas próprias dores.

choro

Quando o corpo se lembra antes da mente compreender

A neurociência confirma: memórias implícitas são formadas desde o período intrauterino e permanecem ativas nos primeiros anos, mesmo sem linguagem ou consciência narrativa. Elas ficam registradas no corpo, nas sensações e nos padrões automáticos.

O bebê pode reagir com rigidez, tremores, choro intenso ou retraimento, não porque entenda racionalmente o que está acontecendo, mas porque seu corpo lembra. O corpo vive aquilo como se estivesse acontecendo de novo, inundado por hormônios de estresse e sinais de alarme.

Muitas vezes ouvimos: “Deixa chorar, uma hora ele para”. E sim, ele vai parar. Porém, não porque foi acolhido, mas porque aprendeu a não pedir mais. Porque entendeu que não será escutado. A dor não some — ela se recalca, se adapta. Mais tarde, pode aparecer como uma sensação difusa de solidão, de ninguém me entende, de não poder contar com ninguém. Pode gerar comportamentos de hiper independência ou uma necessidade desesperada de ser visto e compreendido. Tudo isso começa quando aprendemos, muito cedo, que não vale a pena chorar.

Referências

  • CHAMBERLAIN, David B. Windows to the Womb: Revealing the Conscious Baby from Conception to Birth. Berkeley: North Atlantic Books, 2013.
  • EMERSON, William R. The vulnerable prenate: A review of literature. Journal of Prenatal & Perinatal Psychology and Health, v. 16, n. 1/2, p. 1-23, 2001.
  • EMERSON, William R. Birth Trauma: The psychological effects of obstetrical interventions. Journal of Prenatal & Perinatal Psychology and Health, v. 10, n. 1, p. 21-43, 1995.
  • EMERSON, William R. Somato-Emotional Repatterning. In: KLAUS, Marshall H.; KENNELL, John H. Parent-Infant Bonding. St. Louis: Mosby, 1982.
  • HELLER, Diane Poole; LAPIERRE, Laurence H. Healing Developmental Trauma: How Early Trauma Affects Self-Regulation, Self-Image, and the Capacity for Relationship. Berkeley: North Atlantic Books, 2012.
  • KLAUS, Marshall H.; KENNELL, John H. Parent-Infant Bonding. St. Louis: Mosby, 1982.
  • LEVINE, Peter A. O despertar do tigre: curando o trauma. São Paulo: Summus, 1999.
  • LEVINE, Peter A.; KLINE, Maggie. Trauma na infância: A cura pelo trauma somático para crianças e adolescentes. São Paulo: Summus, 2010.
  • McCARTY, Wendy Anne. Welcoming Consciousness: Supporting Babies’ Wholeness from the Beginning of Life. Santa Barbara: Prenatal and Perinatal Press, 2004.
  • PIONTELLI, Alessandra. Do feto à criança: um estudo observacional e psicanalítico. Porto Alegre: Artmed, 1995.
  • SIEGEL, Daniel J. O cérebro da criança: 12 estratégias revolucionárias para nutrir a mente em desenvolvimento do seu filho. São Paulo: Papirus, 2012.
  • SIEGEL, Daniel J. The Developing Mind: How Relationships and the Brain Interact to Shape Who We Are. 2. ed. New York: Guilford Press, 2012.
  • VERNY, Thomas R.; KELLY, John. A vida secreta da criança antes de nascer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
  • YEHUDA, Rachel. Intergenerational transmission of trauma effects: Putative role of epigenetic mechanisms. World Psychiatry, v. 14, n. 3, p. 243–257, 2015.

Loading

O que achou do conteúdo?

Deixe o seu comentário aqui

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Posts Relacionados

32 – O Choro da Memória do Corpo: Quando o Bebê Conta Sua História Sem Palavras

Quando o choro do bebê não passa Era madrugada. A mãe já tinha tentado de tudo: peito, colo, fralda, canções, silêncio, movimentos ritmados. No entanto, nada funcionava. O bebê seguia chorando. O pai, exausto, pressionava as têmporas, sentindo o som como agulhas no cérebro. Além disso, o bebê, vermelho, com o corpo tenso e os […]

Leia Mais >

Veja todos os posts

arrow_forward